Um dia
destes, ou melhor, uma noite destas, de sono agitado, tive um longo sonho, do
qual, na sua maior parte, não restaram na memória mais do que poucos e confusos
fragmentos. Mas uma parte dele, pouco mais de uma cena, permaneceu intacta, inclusive
com as emoções que ela evocou, indo e vindo por vários dias na minha memória,
até que hoje, por fim, dobrei meu ceticismo e me convenci de que havia ali algo
de especial a ser melhor examinado. Steven
Pressfield, escritor que muito admiro, declara, em sua pequena obra-prima “A
Guerra da Arte”, que sonhos deste tipo não devem ser passados adiante, pois são
uma intimidade com nossa alma, a menos que possam ser úteis para o crescimento
de alguém. Com essa esperança, resolvi compartilhá-lo; espero que te seja útil...
Nada havia de
especial no sonho; era uma cena do passado, mas eu já era da idade que tenho
hoje, numa mistura de dois tempos. Só havia dois personagens: eu e meu pai; aparentemente,
pelo que entendi, ele se mudara para uma cidade do interior litorânea, bem pequena
e pobre, e comprara um muito antigo parque de diversões para ganhar dinheiro e
me sustentar. Sentada em algum lugar, eu via o seu duro trabalho de reformar
aquele velho e abandonado parquinho: limpava carrinho por carrinho de um
brinquedo, e depois, rodava as cadeirinhas de uma velha roda gigante e limpava
rigorosa e detalhadamente, uma a uma.
Seu rosto era
sério e concentrado, talvez com uma leve gota de melancolia. Não falava comigo,
nem parecia me notar; apenas trabalhava. Também sem falar uma palavra, eu o
observava e sofria. Dizia a mim mesma (parecia ser a mim mesma, pois não via
mais ninguém por ali), que eu já deveria ter conquistado meu sustento para não obrigar
meu pai a trabalhar daquela forma, pois já era “grande” o suficiente para isso.
Culpava-me doloridamente por decepcioná-lo, por fazê-lo sofrer.
Acordei
impactada e me recusei a psicologismos baratos; seriam uma profanação. Pelo contrário,
de alguma forma, eu sentia que já estava tudo muito claro e bem explicado
naquele sonho. Aquele homem usava o rosto do meu pai, mas tinha apenas o rosto
dele; o escritor Walter Otto, em seu livro "Teofania", dizia que o Sagrado sempre
se apresenta ao homem com um rosto que lhe permita reconhecê-lo, como alguém
que educa uma criança e não quer assustá-la. A sobriedade e dignidade daquele
homem, sua grandeza... Não era simplesmente a de um homem. Não, aquele não era
meu pai físico, mas era um Pai...
Era um Pai que
reconstruía brinquedos antigos, porque reconhecia, resignado, que eu ainda necessitava
deles para me sustentar; ainda necessitava “brincar”. Meu mundo ainda era
aquele; era cedo demais para destruí-lo. Talvez ele os tenha deixado para trás,
em algum momento, imaginando que eu crescera, e agora, enfrentava a dura
realidade, dura para nós dois. Será que meu Pai esperara que eu crescesse mais
do que eu podia? Será que eu teria podido crescer mais e, ao não fazê-lo,
desapontei as expectativas do meu Pai?
Nada daquilo
parecia muito lógico; apesar da cena triste e amarelada de cartão postal
antigo, com uma mancha de mar ao fundo, apesar do (ou graças ao) silêncio, não
havia dúvidas de que Ele me amava, e de que reconstruiria tempo, espaço, um
mundo inteiro para me proporcionar a experiência de que eu necessitasse para
crescer.
Porém, uma
coisa é absolutamente certa: o que eu mais desejava naquele momento, a única
coisa que aliviaria a esmagadora dor que eu sentia seria honrá-lo como Pai e
realizar seus sonhos para mim. Não havia dúvidas de que a felicidade se resumia
só a isso. No entanto, quando eu desperto... Ainda há tanta imprecisão e dúvida
para saber o que realmente é a felicidade!
Talvez este nosso tempo seja um tempo de limpar. Tudo o que nos faz
esquecermos dos sonhos do nosso Pai, que são nossos próprios sonhos mais
profundos, é excesso, e deve urgentemente ser limpo. Talvez, se nós não nos lamentarmos tanto e formos simplesmente limpar junto com Ele, talvez... Quem sabe, ao
final, já não queiramos mais esses brinquedos para nós? Quem sabe esse esforço de
purificação não nos faça crescer?
Pode ser que,
então, este cartão postal amarelado do que já passou, mais limpo, com menos manchas amarelas, fique para trás, e Ele pegue
forte em nossa mão e nos conduza para um futuro de gente grande, que é o que Ele
sonha para nós e para todos os seus filhos. Se você acredita em sonhos, eu
compartilho meu sonho contigo, como uma criança que divide com o amiguinho o
pequeno doce que tem em mãos. Ainda que um quase nada, uma meia balinha,
permita-se prová-lo agora, saboreá-lo por um momento e sentir e guardar para sempre sua doçura...
Lindo! Gratidão!
ResponderExcluirQuanta generosidade, professora! Compartilhar esse tão delicado momento de expressão da sua alma...
ResponderExcluirGrata.
Concordo professora, devemos pegar um rodo, e como no filme Todo Poderoso, limpar o mundo ao lado de Deus, azulejo por azulejo... Cada dia pertencendo mais da unidade, se perguntando se faz o bastante, tentado não abalar pela culpa de talvez não fazer. Limpar os brinquedos sem culpas... É difícil. Rs amanhã é outro dia para tentarmos. O processo de limpar o mundo nos torna cada dia menos sujos. 🙏
ResponderExcluirO nosso mestre espiritual veste-se de diferentes máscaras. Desde o belo até mesmo o feio. Mas é sempre ele, Deus.
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