Quando ela se foi
Ela era uma
linda gatinha, de apenas seis meses. Brincávamos muito, e ela me fazia sentir mais
criança que ela mesma. Quando a levei para castrar, pensei: “-Ficará enjoadinha e eu a mimarei por alguns
dias.” O telefonema dizendo que ela não tinha resistido e faleceu me feriu como
um golpe, aquele das coisas duras da vida, quando não esperamos por elas, e se
tornam ainda mais duras pelo fator da surpresa.
Ela chegou
num momento muito especial para mim; era mais que um animal de estimação: era
encanto, era alegria, era pureza. Era o focinho mais molhado do universo, ao
encostar no meu nariz, ato mágico que levava embora todas as tristezas. Dois
olhos enormes, azuis, quase grudados aos meus, indagavam, desafiadores:
travessuras! Topa? E a vida inteira se convertia numa gigante possibilidade de
travessuras.
Mas ela se
foi, e eu cheguei em casa, desolada e sozinha, com uma caixa de gatos vazia na
mão. Agora, assimilar no coração o amor a ela, agradecer e continuar vivendo.
Usei o meu velho truque de sempre, ensinado por um mestre maravilhoso, um dos
presentes mais eficazes já recebidos: trabalho. A bicicleta se equilibra no
movimento.
Havia grandes
queijos curados, em cima da geladeira, esperando pelo conserto do processador
ou por um ralador bem disposto. Neste momento, o pesado e repetitivo trabalho
me apareceu como a melhor oportunidade que já existiu.. Alinhei ralador,
bandeja, queijos, e comecei, com ritmo e determinação. Cuidava para as lagrimas
não se misturarem com o queijo. Quando o braço doía, jogava as dores do coração
todas nele. Braço dói pouco, e a gente leva bem.
Como um
carrossel, foram passando pela minha mente , as coisas que quis conquistar, e
as que conquistei e pensei ter perdido. Ralei-as todas. Ralei mágoas e orgulhos
feridos, Aliás, as mágoas, ralei-as ainda com maior determinação. As ilusões,
as mentiras da minha mente... pensar que a vida se vai, pensar que se perde a beleza
e as coisas sagradas da vida? Ralo nelas!
Agora, o bendito
queijo ralado, que cresceu como uma montanha à minha frente,se converteu numa
montanha de esperanças e de fé. As lágrimas também foram raladas, e eu, forte e
renovada, prossigo. Vi a noite nascer, por meio das frestas do ralador, e vi
estrelas surgirem. Estou de pé, e eu sou esperança, fé e gratidão. Renasci.
Agradecer é
necessário, pois meu coração, que era dor, agora, transborda só em graça. Agradeço
aos mestres, ao trabalho, à vida, À pureza dos gatos e à resistência dos
queijos curados, capazes de despertar tanta resistência em nós. E ao Ser que há
em mim, que é um grande processador, capaz de transformar em luz a morte e a vida,
a alegria e a dor. E aqui estou, dedos ralados, alma inteira e agradecida,
pronta, de novo, para outra jornada. Compartilho essa pequena experiência com a
esperança de que meu segredo, tão preciosamente presenteado, possa ser passado
para frente e possa ser, talvez, útil para você. Não demanda muita coisa: só um
bom ralador, e uma vontade grande, enorme, de apostar na vida e de integrar a
dor.
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