Não é incomum, em inícios de ano, examinarmos
o período anterior e listarmos as nossas “necessidades” para o próximo ano. Ao
fazer isso, acabei por perceber que alguns dos meus projetos frustrados não
eram reais necessidades, e sim simples desejos, quase que caprichos pessoais.
Se tivessem sido realizados, talvez esta minha pequena meta tivesse se chocado
contra a grande meta, a de todos os anos, a de sempre, que é crescer como ser
humano e ajudar os demais a crescerem, da forma mais eficiente que me for
possível.
Aqueles desejos, se atendidos... talvez
fossem mais vaidade, mais apegos, enfim, mais carga para arrastar pela estrada
afora. Depois de manifestar a devida gratidão por isso e por tantas outras
coisas, que me beneficiaram por acontecer ou por não acontecer (embora eu as
desejasse, naquele momento), paro para refletir um pouco sobre essa questão:
quais são minhas reais necessidades, aquelas que me dariam impulso e
musculatura para o próximo degrau real da minha vida?
Que curioso, isso: o homem, muitas vezes, não
acredita na justiça, nos valores, na nobreza, no sagrado. Quantas “correntes
filosóficas” de escolas contemporâneas gastaram montes de tinta e papel para
dizer e reiterar que tudo isso é uma fantasia, uma invenção humana; ok, e se
for de fato uma invenção humana? O homem não inventa aquilo de que necessita? E
se necessita, de fato (e não apenas deseja), isso já não é prova de que este
algo existe? Que tal tentar provar para o faminto que a comida não existe? A necessidade
é real, e a convicção é absoluta, neste caso, e deveria ser em muitos outros: a
natureza é requintada, e não cria verdadeiras necessidades que não correspondam
a realidades legítimas, em algum plano. Seria enunciar algo como, pedindo perdão
pela pobreza da paródia, “Necessito, logo, existe”.. Daí, viria um bom
questionamento: para saber o que é real, precisamos saber quais são nossas
verdadeiras necessidades.
Lembro de uma antiga história zen, muito
badalada pela internet afora, mas creio que bem pouco compreendida, que sempre
gostei de contar aos meus alunos: um dia, uma sábio mestre zen recebeu um jovem
que se propunha a ser seu discípulo (quase toda história zen começa assim...):
“-
Pois muito bem, explique-me, meu jovem, a razão pela qual, na sua pouca idade,
se resolveu a ser discípulo de um ancião como eu?” O jovem, que já esperava
pela pergunta, ajeitou-se e recitou a resposta pra lá de pensada e ensaiada: “-
Sabe, mestre... eu quero ser seu discípulo porque eu sinto uma necessidade
ardente e desesperadora de Deus!”
Calmamente, após não mais que alguns segundos
de reflexão, o ancião se levantou e caminhou em direção às margens de um rio
próximo, pedindo, com um discreto gesto de mão, que o jovem o acompanhasse; ajoelhou-se bem
próximo da margem, e assim também o fez, ao seu lado, o jovem. De repente, sem
mais aviso, o ancião, bastante robusto para a sua idade, tomou a cabeça do
jovem pelos cabelos e a mergulhou no rio, deixando-a aí; o jovem, perplexo,
começou a se debater, sem conseguir se libertar. Mais alguns segundos, mais alguns,
mais alguns e o jovem chegou ao limite do desespero, quase se afogando. Então,
de súbito, o mestre o soltou. “- O que é isso, mestre? O senhor está louco? Quer
me matar?” Levando o indicador aos lábios na vertical, no tradicional gesto de
quem pede silêncio, com seriedade, o mestre indagou: “- Diga-me apenas uma
coisa: quando estava lá embaixo, você tinha necessidade ardente e desesperadora
de quê?” “-De respirar, é claro!”, respondeu o jovem, ainda um pouco atordoado
com a situação como um todo e ainda mais com a estranha pergunta. “- Pois é.
Quando você, meu jovem, tiver necessidade ardente e desesperadora de Deus tanto
quanto teve de respirar, lá embaixo, procure-me, que te aceitarei como
discípulo.”
A historinha, embora curiosa, parece uma
parábola moral meio lugar comum, sem maiores consequências práticas. Mas pare
para pensar, repetindo a pergunta inicial: de que necessitamos? Tem uma lista
que é bem recorrente: necessitamos de reconhecimento, de auto-afirmação, de lazer,
de diversão, de segurança, de conforto, de ser amados, de ser lembrados e até
de ser “mimados”, se possível... Ôpa, cadê a necessidade de justiça? de fraternidade?
de nobreza de alma? do Bem? E não digo nem necessidade “ardente e desesperadora”,
que nosso cacife dificilmente chegaria a tanto, mas, quem sabe... uma
necessidade um pouco angustiante? Incômoda? ligeiramente... desconfortável e
pontiaguda, por baixo de nosso travesseiro?
Achou essas “sadias dores” em você? Parabéns,
amigo! Acabou de ganhar gratuitamente uma fonte de convicção inesgotável de que
existem a justiça, a fraternidade, a nobreza de alma e o Bem! Não, não se trata
de nenhum “bolão da fortuna”, nem de propaganda enganosa para assinatura de
revista! Ganhou mesmo! E ganhou por mérito, e não por sorte; o mérito das suas
necessidades.
Relembrando bem, para não deixar nada
importante para trás: neste ano novo, faça o que quiser: compre, venda,
viaje...só não descuide das suas necessidades humanas: alimente-as sempre,
verifique se ainda estão aí. Não se esqueça do essencial: elas são o passaporte
para a viagem mais fantástica que alguém já sonhou realizar: em direção a um
homem e a um mundo novo e mais “humano”, verdadeiramente. Ele existe porque
você (e tantos!) necessitam dele!
“Nada Te podemos pedir, pois conheces nossas
necessidades antes mesmo que nasçam em nós. Tu és nossa necessidade, e, dando-nos
mais de Ti, Tu nos dás Tudo.”
Gibran, A Prece, in “O Profeta”.
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