Confeitaria Colombo

Esta é a terceira vez que escrevo sobre este assunto, na minha vida; ambas as anteriores foram extraviadas. Por ser uma memória especial, resolvi reescrever, com a tônica do que sou hoje, como não poderia deixar de ser.
Trata-se da lembrança de uma simples lata redonda de biscoitos amanteigados da Confeitaria Colombo que minha mãe possuía, onde guardava linhas, agulhas e botões. Havia um desenho redondo na tampa e alguns desenhos ovais toda a volta, como camafeus. Eram cenas de um cavalheiro e de uma dama da década de 40, elegantes e gentis; pareciam apaixonados. Na tampa, ele puxava a cadeira para que ela se sentasse; nas laterais, ele abria uma porta de vidro emoldurada em madeira para que ela passasse; os dois dançavam, num chão de ladrilhos decorados e lindos lustres flutuando sobre suas cabeças; curvavam-se levemente sobre a mesa, saboreando doces; ele, embevecido, olhava para ela, enquanto ela baixava os olhos, levemente ruborizada... e assim prosseguiam as demais cenas.
Eu me deitava na cama de casal da minha mãe, para ficar da mesma altura que a lata, e a rodava, diante dos meus olhos; às vezes, pegava apenas a tampa e mirava por sei lá quanto tempo. A mãe, de vez em quando, implicava: “Larga isso, filha! Vai ver televisão!” E eu sorria ante a incompreensão dela: eu já estava vendo “televisão”! A Zenith grandona da sala não oferecia nada tão belo como aquilo. Diante dos meus olhos, a dama desfilava, delicada, e o cavalheiro, elegante e cheio de atenções. Os dois eram formais, quase que cerimoniais em tudo o que faziam: até degustar um biscoitinho. Ao dançar, eretos, distantes um do outro, ela pousava suavemente sua mão sobre o ombro dele, como uma pétala caída sobre a água.
E eu imaginava o que diziam: “Tu sabes o quanto te estimo...” Claro, tinha que ser sempre “tu”, sempre segunda pessoa. Tratar alguém por “você”, terceira pessoa, para mim, abriria espaço para que uma segunda pessoa se colocasse entre os dois: em geral, a impessoal figura da banalidade, da informalidade, que leva embora a magia de tudo. E eu imaginava... Sabia que a mensagem estava clara, implícita, o tempo todo, mas ele jamais diria “Te amo” com apenas duas palavras. Usaria todas, todas as palavras, para que nenhuma ficasse enciumada (afinal, qual a utilidade de palavras que não servem para dizer “Te amo”?) Ele daria voltas e voltas ao mundo, buscando as mais belas palavras, e eles tocariam apenas fugazmente o chão e voariam, como um casal de bailarinos.
“A Senhorita aceita uma contradança?” Senhoritas lembram borboletas, de tão diáfanas e delicadas que são. E a minha, especialmente, o era.
Foi aí que aprendi, pela primeira vez nesta vida, a dificuldade de compartilhar sonhos: minha mãe balançava a cabeça, sorria, um sorriso meio amargo, e dizia: “- Chega de fantasia, filha! A vida não é assim...”
Hoje, os anos são muitos desde esta cena tão prosaica e especial para mim. A mãe, o pai, a lata de biscoitos, todos se foram... Mas os sonhos ainda estão aqui, cada vez mais vivos. E eu me pergunto: o que era mais real? Virá dia em que eu também me irei, mas aqueles que me amem herdarão o que de mais belo construí com minha vida: meus sonhos. Ainda haverá quem imagine um mundo de suaves músicas, cavalheiros e damas verticais e corteses, tocando-se como pétalas, usando todas as palavras do mundo... para falar de um amor cada vez mais amplo, verdadeiro e profundo. E eles deslizarão por tempos e espaços, quantos houver; apenas uma imagem... Ou não? A banalidade e o vazio, o viver egoísta, o matar o tempo, colecionando o fugaz, é também uma imagem, uma máscara que escolhemos vestir: simples assim. Por que não escolhemos mudá-la? Porque não queremos, ou não acreditamos ser possível. Nenhuma das duas máscaras é nosso verdadeiro Rosto, aquele eterno e atemporal, mas, com certeza, a máscara bela o veste melhor, e se parece mais com Ele.
Eu me conto entre aquelas pessoas que creem que nada há de dramático em deixar essa vida, na hora que couber, e seguir nosso caminho. Nestes dias, se houver quem queira relembrar algo de mim, não só meu rosto, mas meu coração, não olhe fotos, nem conte casos: apenas gire lentamente os desenhos de uma lata de biscoitos amanteigados da Confeitaria Colombo, na altura dos seus olhos, como um filme. De alguma forma, serei eu que estarei ali, bailando e sonhando, provavelmente, com a suavidade de pétalas caídas em lagos e com o voo de borboletas...  

Comentários

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. Belíssimo conto ressaltando a poesia que existe de ti.
    Convido-lhe a conhecer meus poemas e minicontos, bem simples mas que brotam também das minhas latas de biscoitos, na página Recanto das Letras.
    Abraço, Cláudia Machado

    ResponderExcluir
  3. Que lindo isso...eu também trago na memória vários roteiros de sonhos que fiz a partir de uma lata de biscoitos que era de minha mãe - mais antiga que a da Confeitaria Colombo. Não tenho mais minha mãe, mas guardo a lata de biscoitos até hoje. Gosto das emoções que ela me me traz ainda hoje...Acho que, assim como vc, também vou gostar de ser lembrada quando alguém girar uma lata de biscoitos amanteigadas nas mãos. Gratidão por esse texto tão tocante.

    ResponderExcluir

Postar um comentário