Um dos mais
conhecidos mitos do filósofo Platão, depois, evidentemente, do muito comentado “mito
da caverna”, é este do pastor de ovelhas da região da Lidia, de nome Giges,
conhecido em suas terras por sua honestidade e moral “inatacáveis”. Porém, o
mesmo, ao encontrar, nos pastos, um anel que tinha o poder de torná-lo
invisível, deixou que sua “moral”, que não passava de fachada para construir
uma reputação, fosse inteiramente por terra, praticando todo tipo de tramoias e
falsidades.
Não vou aqui repetir
a questão clássica, que se coloca sempre que alguém conta esta história para
outro: “- O que faria você, se tivesse o anel de Giges em sua mão?” Se for do
interesse do leitor, que repita, reservadamente, para si mesmo, essa delicada e
antiga pergunta, preparado para confrontar as nem sempre fáceis respostas. Da
minha parte, gostaria de prosseguir com o argumento platônico, pois o que vem
depois é de igual importância e interesse.
Platão faz um
novo questionamento, na sequência desta ideia: e se Giges, ao usar seu anel de
invisibilidade, permanecesse tão honesto quanto o era quando ainda visível, e
os demais cidadãos viessem a saber disso? O que diriam? Segundo o filósofo, o
comentário geral seria elogioso, pois todos temeriam ser vítimas deste
inusitado “dom” de Giges, mas, ocultamente, de si para consigo, muitos diriam:
“Que estúpido! Como desperdiça uma oportunidade dessas? Ah, se fosse comigo,
seria diferente!”
Em suma, ele
conclui: as pessoas, na sua maioria, não amam a conduta justa, a justiça em si.
Estabelecem uma espécie de “pacto social” em torno dela, para não terem seus
interesses prejudicados: “Eu não leso os seus direitos, e você não lesa os
meus.” Mas, se houvesse uma forma de fazê-lo com a garantia da impunidade...
que ingênuo, o Giges!
Assim, nossa
ética seria de coerção, e não de convicção, pois, sem amor à justiça, não há princípios,
aquilo que fazemos por amor e respeito inclusive a nós mesmos, e não apenas pela
opinião do meio. Desde a infância, recebemos ameaças e prêmios para cumprirmos
nossas obrigações mais triviais e básicas: se não obedecer, papai do céu
castiga; se não comer a salada, papai noel não traz presente; se não estudar,
vai perder sua mesada... Quantos acabam, por fim, amando a obediência, a salada,
o estudo? Ou apenas o que se pode obter através deles? E se pudermos contornar
estes ”contratempos” e irmos direto aos nossos interesses? Quantos não o
aceitariam?
Lamento
concluir desta forma, mas somos obrigados a concordar que, sem desenvolver um
verdadeiro amor pela condição humana e os valores que a caracterizam, estamos
adestrando, e não educando; é uma ética superficial e vulnerável, que não
resiste a situações de exceção. E os campos
do mundo estão lotados de “aneis de Giges” que podem ser encontrados, muitas
vezes, por líderes nem sempre muito leais ou atentos ao bem de seu “rebanho”.
De uma forma ou de outra, os homens sempre dispendem suas vidas correndo atrás
daquilo que amam, e o amor aos valores humanos, se real, dispensa uma
vigilância perpétua (e ineficaz) sobre o comportamento alheio, sobretudo
daqueles que lideram. Desperte a consciência humana, e ela será um vigilante
implacável e incessante, vigiando desde dentro, de um ponto onde nada se pode
omitir.
Mas se isso lhe
parece utopia, continuemos “educando” apenas para despertar habilidades, sem
saber a quê ou a quem elas servirão depois. Se forem empregadas na direção
errada... punimos! Só tomando cuidado para verificar se, em alguma altura, quem
pune não se torna aliado de quem erra, pois, quando não há em nós a grande
referência ante a qual todas as coisas podem ser avaliadas como certas ou
erradas, que são os valores humanos atemporais, aqueles que nos conferem a
dignidade humana... como poderemos julgar?
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