A cela, as chaves... A vida.



Há alguns meses, assisti ao filme “Mandela: longo Caminho para a Liberdade”, de 2014, com o ator britânico Idris Elba no papel-título, uma das várias obras que têm sido feitas sobre este que foi um dos nossos mais ilustres contemporâneos. Não vou falar sobre o filme como um todo, que me pareceu válido e interessante, apesar das críticas em contrário, mas sobre uma cena específica, que, longe de ser a mais importante ou tocante, ficou gravada na minha memória: recentemente recolhido à prisão de Robben Island, em uma cela-cubículo de dois e meio por dois metros, aproximadamente, Mandela, para não enlouquecer, começou a se exercitar de todas as formas possíveis naquele exíguo espaço até cair de exaustão (pelo menos assim mostra o filme).
Hoje, voltou à minha mente esta cena através de uma estranha associação, daquelas que só as “esquisitices” típicas de filósofos explicam. Olhando as pessoas andarem aceleradamente para lá e para cá, pelas ruas, tive a impressão de que todos fazemos o mesmo: movemo-nos o tempo todo até cairmos de exaustão para esquecermos que estamos numa cela, e para mantermos, nestas condições, alguma razoável sanidade. Como diversão, corremos atrás de coisas e sensações que nos agradam, tais como objetos e estímulos de diferentes formas, cores e intensidades, mas, no fundo, todos muito parecidos entre si. De fato, não passam de brinquedos para distrair, que colocamos dentro deste quadradinho que chamamos de “nossa casa”, a qual não pode ficar vazia, pois nós já estamos vazios o suficiente.
Até a presença do outro ser humano, muitas vezes, não vai além de uma “coisa útil” para esquecermos da cela e não sofrermos de claustrofobia. Depois de uma vida útil – ou inútil – em geral pequena, todo esse monte de coisas que colecionamos  é descartado e renovado. E aí, voltamo-nos para o nosso corpo: pintamos rosto, unha, cabelos, mente e emoções, pintamos tudo, e fazemos de conta que acreditamos nas cores que mostramos uns aos outros. Mas a pintura desbota – que bom! - e então, pintamos de novo.
Os hindus possuem um conceito para este circular “eterno retorno” que executamos dentro de nossas celas, conceito conhecido como “roda do samsara”. Em uma aula, uma vez, após explicar do que se tratava o samsara, um ouvinte me disse que não havia entendido bem, e me pediu que voltasse a explicar. Eu o fiz, é claro, mas somente após alguns segundos de interna perplexidade: como pode não entender o samsara? Será que ele não o sente? Não fica tonto e sem equilíbrio, de tanto andar em círculos, de vez em quando? Quem não fica?
Num dia desses, retornei a uma loja para procurar uma peça que tinha me interessado, um belo cisne em porcelana,  e fiquei sabendo que já havia sido vendido. A vendedora, atenciosa, argumentou: “- Que pena! Mas recebemos outras peças novas: veja este leão e esta zebra: lindos! Não combinam com sua decoração?” Talvez combinassem; mas eu não soube como explicar para ela que o cisne era, para mim, mais que simples decoração: era um símbolo que representava algo, um mundo de uma beleza sonhada, que me provocava uma espécie de nostalgia ou de saudades de um lugar desconhecido; eu não o queria, objeto concreto propriamente dito, mas queria algo que eu acessava através dele.
Não fazia sentido para mim, naquele contexto, desejar algo que não fosse símbolo, que não criasse uma ponte para fora da cela, uma esperança. Não que leões ou zebras não sejam símbolos; tudo é, mas não eram palavras que meu escasso conhecimento da linguagem da alma conhecesse e pudesse usar ainda como ponte, naquele dia... Meu cisne era como o ursinho que a criança abraça, pois ele representa, para ela, a segurança e o aconchego dos braços dos pais, que existem em algum lugar, ela sabe, mas que não estão visíveis, por agora...
Há um livro chamado “A Voz do Silêncio”, obra extraordinária de uma autora que merece o mesmo adjetivo, o qual explica que, segundo a tradição tibetana, a origem de todos os males é a chamada “heresia da separatividade”: o egoísmo de nos sentirmos separados uns dos outros e pensarmos apenas em nós. Daí viriam a solidão, a violência e tudo o mais. Parece-me que há uma grande chance desta “heresia” ser a tal cela que tanto nos angustia e sufoca. Há uma Lei Universal, Unidade, e o fato de ignorá-la reiteradamente nos levou a esta “penalidade” do isolamento e da consequente alienação, para esquecer do isolamento.
Mas se as penalidades deveriam ser, por princípio, educativas, esta não tem sido: cada vez mais, reforçamos o ponto que nos torna “infratores” desta Lei. Imagino um ridículo prisioneiro que assim o fizesse: ao invés de tentar a própria reivindicação, a cada ronda que o carcereiro fizesse diante de suas grades, ele gritaria, a pleno pulmão: “- Roubei pouco! Quando sair daqui, vou voltar lá e roubar mais...” Assim exibimos nosso egoísmo e separatividade ante o carcereiro-lei: com arrogância e até com certo orgulho. Não é difícil deduzir o fim desta novela.
Cada dia mais, eu me pergunto como viver sem o auxílio da Filosofia para nos ajudar a penetrar nas entrelinhas deste curioso amontoado de fatos dispostos no tempo sem um sentido evidente, rastreando respostas. Como podemos pensar que a Filosofia é pouco prática ou dificil de se entender, se ela está em cada passo, em cada decisão, na direção de vida que anseia por se tornar consciente e nas coisas, dentro e fora de nós, que esperam para serem dotadas de sentido?
Um antigo romance que li terminava em uma frase pomposa: “A posteridade entenderá o sentido de tudo isso...” É possível, mas a posteridade tem um terrível e grave defeito: demora excessivamente para chegar, e esperar por ela para buscar o sentido de tudo isso pode gerar ansiedade, vazio, tontura de tanto girar no mesmo ponto e exaustão. Filósofos sabem o que querem: a chave da cela. E não o querem na posteridade, mas hoje... agora. E a busca desta chave-símbolo constitui sua particular forma de felicidade.

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