Época de festas, é natural que todos
voltem às suas famílias, e são comuns as fotos e relatos destes felizes reencontros.
Este é um fator muito constante que leva à reunião das pessoas: o parentesco
físico. Longe de mim querer questionar sua eficácia e aspecto benéfico secular,
mas, como qualquer coisa no mundo manifestado, este fator é também dual: tem seus
aspectos positivos, bem conhecidos, e alguns negativos. Lembro-me de uma experiência
vivida na minha distante adolescência, quando assisti ao episódio de um pai que
veio socorrer seu jovem filho, envolvido em uma batida de trânsito, e que
desceu do carro pronunciando uma frase que nunca deixou de ecoar na minha
memória: “Seja o que for que tenha acontecido, estou a favor do meu filho!” A
favor do injusto contra o justo, do errado contra o certo, pois aquele é meu
parente físico, e este último, não? Honestamente, eu preferiria ter um pai que
descesse do carro e dissesse: “Seja o que for que tenha acontecido, estou a
favor da justiça!”. Vínculos físicos de família acima de vínculos humanos de consciência,
ou seja, de valores, já geraram (e geram ainda!) desastres tamanhos na história,
que não vale a pena lembrar e muito menos citar, para não dar cores trágicas ao
meu modesto artigo.
Outros vínculos que reúnem comumente os
homens são relações mais de camaradagem do que de amizade verdadeira, onde a companhia
do outro é entretenimento e fonte de diversão, com o mesmo grau de importância
que o copo de cerveja ou a música ambiente. Não preciso dizer o quão
descartáveis são estas relações, e a pitada de crueldade que há no uso do ser
humano (ainda que mútuo e consentido) como mera fonte de lazer.
Há ainda a chamada “amizade”
construída na cumplicidade de histórias pessoais compartilhadas: o choro no
ombro do outro pelo namoro mal resolvido, pelos problemas do casamento, pelas dificuldades
em educar os filhos... O suposto “amigo” se torna o espectador de um drama
pessoal de pequena relevância, banal, que provavelmente, de outra forma, passaria
(e mereceria passar) desconhecido por todos. Ainda que, às vezes, duradoura,
essa união em torno de coisas tão pouco profundas e transcendentes carece de
raízes que lhe permitam dar frutos de crescimento mútuo e de verdadeiro amor,
que a façam ser digna do nome “amizade”.
Por fim, dentro do meu estreito
conhecimento da natureza humana, vejo aqueles laços que se dão em torno de uma
visão elevada, de valores, de um ideal, de uma percepção espiritual
compartilhada; belo e nobre fator de união, este. Porém (e lá vem de novo o
porém!), essa visão, como qualquer outra, para direcionar e dar a tônica de um
relacionamento, não pode ser o “flash” de um dia, um acontecimento fortuito em
nossas vidas, mas algo que se repita, em ritmo cada vez mais constante e níveis
cada vez mais altos. Não andamos pelas ruas de olhos fechados, orientando-nos
pela visão da calçada que tivemos dez anos atrás... Corremos o risco de bater
contra a parede, defendendo o dogma de uma curva que já foi, há muito, extinta.
Quando nos unimos por uma visão fugaz,
ainda que esta tenha sido nobre e elevada em seu momento, a relação, com o
tempo, cai na mecanicidade (“piloto automático”) de coisas executadas já não se
sabe bem o porquê; surge um “jargão” de
termos repetidos sempre com pompa e circunstância, mas cada vez menos profundos
e vazios de sentido. “Nós estamos unidos em torno de uma Ideia”; belo, isso;
mas qual era mesma o a ideia? Não vale resposta decorada...
Sem inspirações conscientes e
cotidianas, a convivência cai numa banalidade e superficialidade semelhante a qualquer
outra, construída em torno de coisas mais triviais, pois nada conserva seu
valor quando ele se ausenta da cabeça e do coração. Isso acaba se assemelhando
a uma solidão em uma gaiola dourada; corremos o risco de não tolerar uns aos
outros e, ao mesmo tempo, morrer de saudades uns dos outros, daquilo que fomos,
daquilo que poderíamos ter sido...
Anos atrás, eu dava um quarto horário
de uma aula noturna de Filosofia, em meu trabalho voluntário, depois de uma jornada
diária de meu trabalho convencional; começara minhas aulas à 19:00, e essa era
a que terminava às 23:00, a última da noite... Dez minutos antes do fim da
aula, com o corpo já pressionando a psique com seu cansaço, perguntei aos
alunos se havia perguntas, e um deles levantou o braço:
“- Professora, se o Universo manifestado
se expande infinitamente no tempo e no espaço, isso significa que a capacidade
de compreendê-lo se expande também, em nós, até o infinito? Evoluir seria deixar
de frear a nossa capacidade de compreensão? Ignorância é uma forma de inércia, de
preguiça de compreender, para não se comprometer?”
Os olhos dele brilhavam, e ele nem
tocava o encosto da cadeira, ansioso por resposta; era uma pequena parcela de
um grande mistério, que ele havia roçado, e aquilo era vital para a forma como
ele viveria a partir dali... Era muito, muito bonito; minha garganta ficou presa
por um nó de lágrimas pela constatação: somos filósofos, que belo! Cansaço? Quem
estava cansado, aqui?
Por um minuto, lembrei da filósofa
Hipátia, no filme” Ágora”: ela vivia numa época de conflitos terríveis, conturbada,
e sua vida era constantemente ameaçada; mas ela andava sempre preocupada apenas
com um fato: como a terra se movimenta em torno do sol para provocar as
estações? Uma órbita circular não geraria este efeito... olhava para o céu e se
perdia, sonhando e intuindo a órbita elíptica
que, séculos depois, Kepler constataria. Convulsões sociais, vida em risco? Secundário.
E ela tinha razão: de uma forma ou de outra, todos os que ali viviam, e muitas
gerações depois, já foram há muito tempo tragados pela morte; a elipse da Terra
em torno do Sol, grande mistério, ainda está aí, renovando a vida do planeta e
recolhendo-a, ciclicamente.
Guardadas as devidas proporções, eu
me sentia um pouco assim, aquele dia, frente ao meu aluno: dia cansativo, hora
avançada? Estávamos roçando, ambos, a mais ínfima barra dos mistérios da consciência
humana! Era a primeira hora, luminosa e pura, da manhã, não importa o que os
relógios dissessem... Os relógios mentem muito.
Lembrei da história do patinho feio,
que só se reconhece como cisne quando encontra outro igual a ele; é um momento
sagrado de nascimento e/ou confirmação de nossa identidade, esse encontro de
alma. Algo luminoso e belo nasce; é Natal.
Dizem que as famílias se reúnem quando
é Natal; penso que é o contrário: sempre é Natal quando as famílias, no seu
sentido mas espiritual, se reúnem. Esse fator de união reforça nossa
identidade, relembra a conformidade com a Lei Divina que vive em nós. Dá segurança,
serenidade, paz... Felicidade.
Quem viveu isso, um dia, deveria alimentar
essa chama a todo o tempo: “Não deixe que se apague a Chama...” dizia o clássico
egípcio “O Caibalion”. A companhia física não supre a sede de companhia da alma;
em torno do Fogo, somos sempre uma família reunida, e é sempre Natal.
Eu me chamo Lúcia, sou uma Filósofa;
este é meu sobrenome, nome de família. Qual é seu sobrenome? Será que não somos
da mesma família? Que tal compartilhar seu Natal comigo?
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