Conversa simples, numa manhã simples, sobre amor e sol, cães e homens...



Filosofia é algo tão natural, que “saltita” simbolicamente dos fatos sobre nós, como meu cão o faz comigo, agora, de maneira bem explícita (ou seja, nada “simbólica”, pois ele é avesso a sutilezas), aproveitando-se do minuto de atenção que lhe dou. Saindo de casa num dia normal, bem cedo, para levar minha filha ao colégio, esta, ao ver a estabanada alegria do nosso citado enorme cachorro, veio com um de seus comentários, o quais, às vezes, ela mesma não se dá conta de que se trata de um início de reflexão filosófica: “Esse cachorro fica mais feliz ao nos ver do que muitas pessoas ficariam...” Essa observação foi o suficiente para dar início a um diálogo: eu retruquei que o interesse dos cães pelos donos não é tão incondicional como ela pensa: bastaria colocar um pote de comida ou uma cadela dentro daquele terreno, e já nenhum cachorro se interessaria por nós...
Porém, minha interlocutora não se deu por vencida: “- Mas ele só se interessaria pela cadela enquanto durasse o cio, ou pela comida, até comer tudo o que suportasse... depois, os donos voltariam a ser os maiores amores da vida dele. Já os homens... só se interessam pelos outros seres humanos ou por coisas, sempre, e não dão nenhuma bola para os seres acima deles...” Não pude deixar de achar sensato o argumento, mas complementei: “- Está certo... mas também temos que perceber que grande parte dos seres humanos não se interessam realmente por outros seres humanos... apenas têm diferentes tipos de fome ou ‘cio’: físico, psicológico (carência, solidão), mental (interesses)... No fundo, em muitos casos, é também interesse em si mesmos e em suas coisas: satisfação de instintos, preservação da vida, apenas se tratando de uma vida com mais necessidades (ou mais exigências) que a de um cão.”
Isso a deixou um tanto perplexa: “- Aonde você quer chegar com isso? quer dizer que os cães sabem mais de amor do que os homens?”
Bem, eu não queria dizer tudo isso... de fato, eu não queria dizer nada, a princípio; o único lugar em que pretendia chegar era ao colégio para desembarcar minha perguntadora mocinha. Mas tive que me colocar contra a parede e buscar respostas para esse assunto complexo e que surgiu de forma tão inusitada, àquela hora da manhã: o amor humano e suas características. Lembrei que, há não muito tempo, em uma pesquisa para uma conferência, busquei a “etimologia”, ou seja, a origem da palavra amor, que vem provavelmente do indo-europeu amma, balbucio infantil para chamar a mãe.
Certamente, o bebê vê na mãe alimento, proteção, carinho, segurança física e psicológica. Mas e a mãe, o que vê no bebê? além do instinto, que também se manifesta com força neste momento, a mãe tem diante de si um compromisso de doação que não se esgota quando o apelo instintivo se vai: é uma entrega de tudo o que tem de melhor por toda a vida, não esperando outra coisa senão a felicidade do ser amado. E pedir que ela não o faça é ofendê-la, ao pretender roubar sua identidade mais íntima e querida.
Certamente, não é só a mãe que é capaz de este sentimento integral e sem expectativas de contrapartida (e, eventualmente até mesmo algumas mães não o possuem), mas o fato desta possibilidade existir no ser humano é uma boa notícia sobre os limites da nossa capacidade de amar. E se imaginássemos um sentimento desta natureza estendido para toda a humanidade, e não apenas para os nossos próprios filhos (golpe de misericórdia nas motivações instintivas e interesseiras, para tirá-las de uma vez de cena), ou seja, um sentimento ainda mais puro, amplo e belo, que se satisfaça em si mesmo, e não em recompensas? Seria possível?
Alguém imagina a qual temperatura média arde o sol, permanentemente? A quantos seres atende, com luz e calor, energia e vida, graças a este seu sacrifício permanente, sem discriminações quanto a seus receptores e sem dependência de reconhecimentos? Ao imaginar um homem com uma capacidade de amor constante, pleno, desinteressado e destinado a beneficiar a todos a quem ele alcança, vejo que um homem deste tipo seria.... uma espécie de sol entre os homens.
E, além disso, se um homem for capaz de amar (como os cães o fazem) aqueles que estão adiante dele, seres que o inspiram por sua capacidade divina de realizações, inexplicáveis frente à sua própria limitação, e que não exigem deles mais que sua alegria legítima e seu amor? Este ser humano, somada mais esta característica de ”olhar para cima”, ainda lembraria o Sol, poderoso em sua escala, mas humilde diante de um centro maior, da Galáxia, em torno do qual gravita; e assim, indo de centro em centro, chegaríamos até o Coração Misterioso do Universo...
Eu acredito no sonho de homens deste tipo, em homens solares... e parece que minha filha também ficou convencida pelo argumento (não é nada fácil dar a última palavra em um diálogo com esta mocinha.) Depois disso, prosseguimos a viagem caladas. E aquele sol suave e  matinal que acompanhava nossa viagem parecia um cúmplice da nossa busca de compreensão do amor humano em maior plenitude, tentando iluminá-la...

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