Poesia (e vida) com parâmetros

Estes dias, me surpreendi com uma reportagem da Revista Veja (edição 2257), onde o poeta, tradutor e jornalista brasileiro Nelson Ascher, em um artigo intitulado “Cadáver no meio do caminho”, falava sobre a imposição de um modelo na arte, até os dias de hoje, a partir do que se fez na Semana de Arte Moderna de 1922, o que já se encontra totalmente “fora de tempo” (já o era, segundo ele, em seu próprio tempo), e que gerou uma “camisa de força” para as artes em geral, inclusive a poesia, a qual, 90 anos depois, merece se libertar. Foi realmente muito bom ler isso, 
e lamento não ter como chegar ao jornalista em questão para parabenizá-lo pela lucidez. 

Infelizmente, porém, constato que a citada visão ainda é uma voz isolada, e que a “camisa de força” de que falei ainda é o uniforme exigido no meio poético. O mais triste é perceber jovens poetas começando a lançar-se ao seu trabalho poético já “uniformizados”, sem que isso seja uma opção consciente. 

Estes dias, quando ministrei a palestra sobre “A Beleza segundo Roger Scruton”, citava um exemplo deste filósofo inglês, em seu livro “Beleza” (Ed. Guerra e Paz, Lisboa, 2009), que me pareceu muito pertinente: ele argumentava que a arte moderna, por sua absoluta falta de parâmetros e regras, assemelha-se a uma piada...para retomar o argumento em seguida, lembrando que mesmo as piadas têm regras: têm fins (devem fazer rir) e meios (não devem apelar para a morbidez, serem ofensivas etc). Cita o autor uma biografia de Mao Tse Tung em que se relata que o futuro ditador, jovem à época, havia rido às gargalhadas ao ver um equilibrista de circo cair de seu trapézio e morrer, estatelado no chão... Scruton conclui convidando o leitor a pensar um mundo onde as piadas fossem dessa natureza... 

É certo: a arte, as piadas, tudo se insere nos protocolos da vida, que tem parâmetros. A título de exemplo, vamos trabalhar com uma imagem que peca por falta de originalidade, mas que compensa por servir bem à ideia que queremos transmitir: a da vida como um deslocamento, uma viagem de automóvel. O que há que conhecer, para empreender uma viagem como esta? 

Há que saber que: 

1. Existe uma estrada, e a forma segura de transitar é através dela. Desviar muito da mesma pode levar a um desastre de proporções fatais.

2. Nosso veículo, há que conhecê-lo e saber manejá-lo. Um bom curso de habilitação ensinará sobre o que é e como manejar o câmbio, o acelerador, a embreagem etc, além de um pouco de mecânica básica e uso de combustíveis adequados. 

3. Há um destino; para que a viagem mantenha um bom ritmo e chegue a bom termo, há que conhecer, ainda que apenas como ideia, qual é este destino, e querer de fato chegar a ele. 

Estes parâmetros, de tão óbvios e lógicos, prescindem de explicações e se impõem por si só ao bom senso. São exatamente os parâmetros da vida, que trabalha com as mesmas premissas: 

1. Há uma estrada ou “Dharma”, segundo o conceito da filosofia oriental; ela é o caminho de menor resistência que leva todos os seres ao aperfeiçoamento e realização que lhes corresponde. Hoje, sabemos que até os elementos da tabela periódica seguem um processo de transformação em direção a estruturas mais complexas e completas. Os desvios desta “estrada” vão levar à dor e ao desgaste, num processo de desvio/causa e dor/consequência, segundo a também conhecida lei do “Karma” (causa e efeito). 

2. Nosso veículo-personalidade possui estruturas mentais, emocionais, energéticas e físicas, cada qual com funcionamento próprio que deve ser conhecido para que possamos manejá-lo e conduzi-lo adequadamente na direção das nossas metas; inclusive o “combustível“ adequado a cada um dos planos é algo passível de ser aprendido. 

3. Devemos conhecer, além de nossas metas individuais, a meta humana por excelência, a Sabedoria, como exercício pleno dos atributos da nossa condição humana, enamorarmo-nos dela como Ideal e querermos de fato caminhar nesta direção. 

A posse destes parâmetros básicos posiciona-nos de forma sensata e lúcida dentro da vida: identificados, orientados, motivados. São elementos de trabalho essenciais, mas que curiosamente, não se transmitem através da “educação” do nosso tempo. Vemos a humanidade um pouco perplexa diante das portas da vida, sem nenhuma noção do que há adiante. 

O curioso é que essa situação nem sempre é percebida conscientemente e contestada, mas muitas vezes ignorada e aceita com conformismo. Decora-se a antessala da vida e até se gosta dela. Nasce a cultura da antessala, a arte da antessala, a poesia da antessala... Superficial e destituída de qualquer conteúdo, esta última se diverte em produzir sonoridades novas e jogos de palavras curiosos sobre coisas absolutamente irrelevantes: uma arte sem mensagem, um envelope vazio, com um jogo caleidoscópico de aliterações que lembram, eventualmente, um trava-línguas, ou um simples abandono de qualquer forma e a descrição exaustiva de banalidades. Enfim, chamada a falar sobre uma vida sobre a qual não conhece nem os parâmetros básicos, parada ante a porta de entrada, a poesia moderna parece não ter nada a dizer. 

Ante um público que pensa ter (e de fato deve ter) algo a ouvir, ela parece estranha e inútil: abre-se um abismo. Quem, hoje, compra um livro de poesias? Arrisco-me a dizer que a expressão “não gosto de...” hoje talvez se aplique mais à poesia do que a qualquer outra modalidade de arte. Esta, que já inspirou povos e gerações inteiras com obras do porte de um Mahabharata, uma Ilíada e uma Eneida, hoje se coloca cada vez mais à parte da sociedade, sem nada a lhe comunicar ou inspirar. 

Concluo com uma pequena reflexão de uma outra obra clássica, o Dhammapada budista, que talvez tenha algo a nos dizer sobre este triste impasse em que se encontra a poesia de nossos dias: 
“Mais que mil palavras sem sentido, vale uma só palavra sensata, capaz de trazer paz àquele que a ouve." 

Diria que não apenas paz, mas um momento de fuga à banalidade, de reflexão e aprofundamento, que nos permita colocarmo-nos mais conscientemente ante os parâmetros da vida. Contrariando a famosa máxima de Théophile Gautier, da “Arte pela Arte”, diria que devemos recuperar a “Arte pelo Homem”, se queremos que os homens (e não apenas os críticos de arte) voltem a se interessar por ela. A arte que constrói homens e faz história, como já tivemos no Renascimento e tantas outras famosas (e até hoje inspiradoras) ocasiões, no passado humano.

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