Reflexões matinais



“(...) Esvaneceu-se para sempre o meu sonho de Amor..
As horas fogem,
e morro desesperado...
E nunca amei tanto a Vida!”

G. Puccini, ópera “Tosca”, trecho final de “E lucevan  le stelle” (“E reluziam as estrelas”).

Hoje , no percurso matinal para o trabalho, Mário Cavaradossi, personagem de Puccini na “Tosca”, cantarolava na minha mente. Sabe-se lá por que razão, eu lembrava também da “Teoria do Impacto”, joia da filosofia oriental, que diz que a consciência nasce do contraste: entre duas cores, entre duas formas, entre duas notas musicais, entre o que temos e o que perdemos, entre a morte e a vida... E eu me lembrava disso e via Cavaradossi, atado à murada de um castelo, poucos minutos antes de sua execução, percebendo e cantando uma melodia lindíssima sobre o quanto sua vida tinha sido absolutamente feliz por pequenas coisas, talvez não tão valorizadas, quando as viveu... 

Quando saí de casa, meus cães brincavam, eufóricos, no gramado do quintal, e eu, como sempre, pensava: “Felizes por tão poucas coisas... só porque amanheceu e estão vivos!”, E, de repente, Cavaradossi me disse: “Felizes por tantas coisas! Por  inúmeras coisas! Olhe de novo e enxergue!”  E pensei em tudo isto, nestas singelas e imprescindíveis verdades processando-se mais no coração do que na mente de Puccini, e chorei. Chorei porque há manhãs, e porque houve Puccinis que souberam ver e transformá-las em beleza, e porque temos tanto...  “A simplicidade é o maior dos requintes”, dizia Da Vinci, outro que via tanto, e provavelmente também via mais através do coração.

Ao agradecer, lembrei, porém, de que temos que ter cuidado até para ser gratos. A alienação do materialismo nos faz dizer: “Obrigada por Puccini, que era divino!” É como agradecer pela sombra da rosa, e não pela Rosa... Pucccini, Da Vinci e outros tantos eram gênios porque souberam ser canais para que a beleza chegasse ao mundo. Lao Tsé dizia: “As sombras nasceram no mundo porque os homens se tornaram opacos”. Os gênios sabem ser, por alguns instantes, transparentes: assim, a Luz desce ao mundo e nos alcança. Pucccini era maravilhoso, mas Puccini não era divino: Deus era Puccini, Deus era Da Vinci, Deus era Lao Tsé, assim como Shakespeare era Otelo, era Hamlet, era Rei Lear, mais era muito, infinitamente mais, além disso: era Mistério. E não há outra coisa a fazer, se não agradecer a Deus, e ao seu Mistério, e a todos que O manifestam no mundo.

E tive que chorar e que rir quase que ao mesmo tempo, pois as pessoas que cruzavam comigo me olhavam, viam minhas lágrimas e pareciam preocupar-se e compadecer-se: deveriam me invejar apenas por este meu “minuto de glória”, porque eu estava em meio a Rosas. Platão dizia algo muito parecido, e eu entendi melhor, neste momento: há quem se apaixone pelas sombras das sombras, há quem ame as sombras das Rosas, e há quem ame... as Rosas! Isso também lembra o caminho de Eros, de Plotino, outro gênio que via, e parecia ver o tempo todo, e parecia viver o tempo todo num jardim de rosas! 

Ainda que peque por uma absoluta falta de originalidade para saber agradecer, pois vivo muito longe de poder dar à luz a Cavaradossi’s, não posso deixar de dizer, com a mais íntima, simples  e legítima das minhas vozes: mil vezes grata, Senhor das Rosas, que nos envia os gênios como dádivas!



Comentários

  1. Abençoados são os grandes homens, ou as grandes mulheres, que deixaram grandes pegadas, assim como você deixou a sua, no meu caminho.

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  2. Gratidão prof. Lúcia por sua lucidez e capacidade de multiplicar a beleza da luz divina!

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  3. Gratidão Professora por tudo!!!

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