O intelectualismo "kitsch"

Para quem ainda não o conhece, o termo kitsch, de origem alemã, vem ganhando espaço em nosso vocabulário como sinônimo de cópia mal feita, vulgar e, no caso de literatura, cheia de estereótipos e chavões. No campo do intelectualismo, ele vem também marcando presença, tornando-se tão comum quanto um bom arranjo de flores de plástico em cores vivas e descombinadas. 

Refiro-me, como exemplo, a um artigo publicado pela revista Veja na sua edição
de número 256, de 15 de fevereiro deste ano. O artigo, intitulado “A vida depois da vida”, mistura neurologia, psicologia e genética para expor teorias, não oficialmente destas áreas, mas de pensadores em particular que, extrapolando totalmente seu campo de atuação, pretendem definir conceitos de natureza filosófica e até teológica com base exclusivamente na biologia. Pontua-se o artigo com adjetivos do tipo “crédulos” (sinônimo de ingênuos, segundo o Aurélio) e “fundamentalistas” atribuídos aos que acreditam na vida após a morte, enquanto se intitula o biólogo que se opõe a este conceito como integrante de uma “estirpe de cientistas”. 

Curioso é que, na edição de Galileu de novembro de 2011, o neurologista e filósofo Raymmond Tallis, certamente integrante dessa “estirpe de cientistas”, intitula como “neurobobagem” a tentativa atual de reduzir o homem a um “zumbi moral”, produto de suas atividades cerebrais, e como “pseudo-disciplinas” às que tentam explicar tudo via “funcionamento do cérebro”. E ainda dá exemplos: neurodireito, neuroestética, neurocrítica literária... e agora, a Veja acrescenta a esta curiosa lista a “neurometafísica”. 

Mais um dado sugestivo acrescentado pelo artigo em questão: 51% das pessoas, em 23 países, acreditam na imortalidade da alma; no Brasil, este percentual sobe para 72%; será que paira nesse ambiente a insinuação em off de que credulidade é sintoma de subdesenvolvimento, ou serei eu, crédula leitora, que estarei vendo fantasmas? 

Quem já teve a oportunidade de conhecer o texto do filósofo espanhol Ortega y Gasset, in “A Rebelião das Massas”, quando trata do perigo do especialista, deve lembrar o quão bem ele define este padrão de comportamento: 

“...outrora, os homens podiam dividir-se, simplesmente, em sábios e ignorantes, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser submetido a nenhuma destas duas categorias. Não é um sábio, porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade; mas tampouco é um ignorante, porque é «um homem de ciência» e conhece muito bem a sua fração de universo. Devemos dizer que é um sábio ignorante, coisa sobremodo grave, pois significa que é um senhor que se comportará em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio.” 

Nesse sentido, a reportagem em questão se esmera: esbanja falácias, como a do apelo à autoridade, ao colocar como “conclusão da ciência” àquilo que foi afirmado por apenas um cientista, havendo bastante controvérsia no meio; a falácia do ônus da prova (não foi provado, não é verdadeiro: “Nos 50.000 anos do homem sobre a terra, nunca se provou...”) e até mesmo o ataque à pessoa, nivelando os “crédulos” a uma visão de um “além” estereotipado com “...cadilacs amarelos conversíveis sobre ruas de ouro”, em contraposição às “sérias e bem fundamentadas” afirmações cientificas. 

Não é necessário apurar muito o ouvido para perceber, nesta reportagem, um eco do mais puro positivismo de Augusto Comte, que, no século 19, enunciava em alta voz que o científico era o ápice evolutivo do homem, incompatível com “infantis e superadas” crenças religiosas e filosóficas. Cópia do positivismo em pleno século XXI, convenhamos, é “kitsch” na sua melhor forma. 

Em contraposição à “não comprovada” e” irracional” crença na imortalidade da alma, a reportagem desfila afirmações categóricas curiosas e “comprovadíssimas”: “O pensamento sobrenatural no adulto é resíduo dos erros conceituais da infância” (o que diria disto Jung, com seu famoso “Red Book”?); “O Universo é um caos; (...) Tudo é aleatório e casual.” (para afirmar, na sequência, que o cérebro é ordenado e ordenador, ou seja, não faz parte do universo, nem de “tudo”). De quebra, ainda ficamos sabendo que a responsabilidade pelos ataques terroristas às torres gêmeas teve como “uma das principais motivações” a crença na imortalidade da alma (para quem não sabe, o salvamento de mais de mil judeus por Oskar Schindler, na 2ª Guerra Mundial, também teve esta mesma “principal motivação”...). Não é demais lembrar a falácia do “depois disso, por causa disso”: crê na imortalidade; logo, é mais fácil que se torne terrorista (o terror do materialista Stalin e assemelhados são detalhes a serem desconsiderados). 

Por último, mas não menos importante, desfere-se a joia das joias, brindada por dois “especialistas”: “...nossos valores e crenças foram desenvolvidos para nos proteger da morte” e “O valor de uma coisa é definido por sua escassez...(...)As consequências da eternidade seriam ruins para o indivíduo e um desastre para a civilização”. Bela aplicação do “economês” ao delicado terreno dos valores humanos...isso sempre funciona bem. Ou seja, a beleza, a honra e a grandeza que brilham em um 9º sinfonia de Beethoven ou em um quadro de Rafael são resultados de seu medo à morte. Se fossem, ambos, absolutamente céticos e materialistas em suas crenças, produziriam mais...a questão é...mais de quê?

Uma coisa que pertence ao simples, quase simplório (mas não kitsch!) senso comum é o fato de que os grandes dramas da humanidade atual têm como raiz o materialismo e o egoísmo, em suas formas mais predadoras e ferozes. O “intelectualismo kitsch”, com sua pompa de nomes laureados por títulos acadêmicos justificando afirmações mais que duvidosas, é uma gota amarga na ração diária de desumanização a que todos somos submetidos. Ofende a ciência séria, a filosofia séria, o bom gosto e o bom senso em geral. Quando não há nada a dizer, cai muito bem o silêncio discreto que sempre acompanhou os bons pesquisadores, seja qual fora área a que pertençam. Virá tempo em que a inconsequência no uso das palavras, como hoje se pune o medicamento mal administrado, que agrava os males do paciente, venha a ser punida por delito de “lesa-humanidade”. Ainda correndo o risco de ser chamada de “crédula”, não deixo de acreditar que virá este dia.

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